Peru: presidente é preso após tentar fechar Congresso
Em manobra kamikaze, Pedro Castillo inicia dia confrontando parlamentares, e não sobrevive a terceiro ‘impeachment’; primeira mulher no cargo, vice Dina Boluarte toma posse como presidenta
Em apenas duas horas, o que começou como um autogolpe (ou “golpe de Estado”, como classificado por boa parte da imprensa e da classe política peruana) promovido pelo presidente Pedro Castillo se converteu na completa derrocada do mandatário: além de destituído pelo mesmo Congresso que ele tentou dissolver mais cedo nesta quarta-feira (7), Castillo também acabou preso, dando fim ao seu tumultuado percurso à frente do Executivo peruano.
Antes de explicar a densa crise que eclodiu no fatídico “dia D” para o agora ex-chefe de Estado do país, vamos recapitular a jornada de tensão: no final da manhã em Lima (início da tarde no Brasil), Castillo entrou em cadeia nacional para anunciar o fechamento do Parlamento e a instauração de um “governo de exceção”. Além de inabilitar os deputados, também estabeleceu um toque de recolher, prometeu reorganizar o sistema judiciário (com o qual anda às voltas), disse que governaria por decreto até um novo Congresso ser eleito, anunciou um processo constituinte, e pediu que cidadãos entregassem armas ilegais ao Estado – esta última, talvez, uma tentativa de evitar um banho de sangue nas ruas.
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O movimento foi considerado golpista pelo próprio Congresso, pelo Supremo, pelas Forças Armadas, por aliados do presidente, pelo advogado que o defende de acusações de corrupção e, mais uma vez, pela imprensa do país (que nunca foi muito solidária ao governo). Até mesmo a vice-presidenta Dina Boluarte foi às redes para definir a manobra do mandatário como “golpe” e uma “quebra da ordem constitucional”. Com Castillo em completo isolamento institucional, o inevitável efeito rebote foi imediato: na Casa legislativa, que nem passou perto de reconhecer a dissolução, parlamentares resolveram antecipar a terceira votação de moção de vacância (processo similar a um impeachment) contra o presidente. É certo que ele já havia sobrevivido a outras duas – nas primeiras tentativas, seus adversários não deram conta de alcançar os 87 votos necessários para a medida prosperar, visto que são exigidos dois terços do Congresso. Hoje, foi diferente: diante de uma debandada geral, muitos votos ‘viraram’ (inclusive de membros do Perú Libre, o ex-partido de Castillo e outrora a barreira que impedia sua queda). A vacância foi adiante com 101 votos a favor e apenas seis contra, além de algumas ausências e abstenções, e Pedro Castillo foi finalmente derrubado do cargo.
Com o fim do ciclo de um líder que jamais conquistou governabilidade, quem recebe a faixa presidencial é a vice Dina Boluarte. Ela é a sexta figura a assumir o controle do mais alto cargo do Executivo no Peru desde 2018 e também a primeira mulher a presidir o país na história. E não há garantias de que ela vá se manter na cadeira até o final do mandato em 2026: a julgar pelo seu histórico de proximidade com um rechaçado Castillo, não é difícil imaginar quem será o próximo alvo de um Congresso acostumado a derrubar presidentes.
Afinal, foi golpe?
Prevista em lei, a dissolução do Congresso não é necessariamente golpista e já foi utilizada recentemente na história peruana: em 2019, o então presidente Martín Vizcarra (2018-2020) também usou essa prerrogativa constitucional para fechar o Legislativo e convocar novas eleições. O problema, como costuma ser em temas envolvendo a Carta Magna, é a interpretação da lei: o presidente pode dissolver o Parlamento e convocar novas eleições após seu gabinete de ministros ser derrotado em dois votos de confiança submetidos à Casa. No caso de ser derrotado apenas uma vez, quem ‘cai’ é o gabinete. Algumas semanas atrás, o governo Castillo já havia dado sinais de que tentaria essa estratégia ousada, propondo uma “questão de confiança” que – sabia-se – nem seria votada. Na ocasião, contrariando os ditames do próprio Congresso e do Tribunal Constitucional (TC, o Supremo local), o governo encarou aquela decisão como a primeira negativa (o ‘strike 1’) e destituiu o gabinete pela quinta vez desde que assumiu, embora fosse apenas a primeira relacionada a um voto de confiança. Castillo abriu caminho para deixar uma eventual dissolução no gatilho.
É aí que se diferencia a crise desta quarta-feira daquela vivida em 2019: quando Vizcarra tomou uma medida parecida, o Congresso também reagiu com a destituição do chefe do Executivo – mas ninguém levou a sério. Na época, o presidente não só gozava de um apoio popular mais sólido do que o de Castillo atualmente (Vizcarra se vendia, e ainda convencia, como um paladino anticorrupção), como também contou com endosso do TC, que garantiu a validade da manobra constitucional. Hoje, Pedro Castillo não tem apoio entre os poderes da República: o TC já havia contrariado sua interpretação a respeito do tema da “questão de confiança”, dando margem para o Congresso reagir e ser respaldado, enquanto as Forças Armadas e a Polícia Nacional tampouco se dispuseram a embarcar na tese presidencial. Mesmo sem sequer apresentar um segundo voto de confiança, ou seja, abrindo mão de qualquer argumento legal, o presidente partiu para cima do Legislativo e anunciou o fechamento do Parlamento. E, como explicado acima, o sonhado “contragolpe” de Castillo saiu pela culatra: no fim, o Congresso seguiu aberto, todo mundo largou o presidente na estrada e foi ele quem acabou derrubado.
Nossa cobertura em tempo real da frenética quarta-feira em Lima:
A eterna queda de braço entre Executivo e Legislativo no Peru também se explica pelo sistema político do país: um semipresidencialismo em que tanto o presidente pode usar pretextos simplórios para dissolver o Congresso quanto os deputados usam a moção de vacância contra o presidente da vez, mesmo sob o vago argumento (previsto em lei) de “incapacidade moral permanente”. É como se os dois lados estivessem em um interminável “se colar, colou”, dependendo da popularidade do momento e da bússola política dos deputados, tudo para se ver qual tese prevalece junto ao TC, à opinião pública e às forças de ordem. Não à toa, esta já era a terceira vez que Castillo encarava uma moção em apenas 18 meses de governo. Vale lembrar: o próprio Vizcarra, depois de “vencer” a briga em 2019, foi prontamente derrubado pelo novo Congresso eleito no ano seguinte, o que deu início a uma crise sucessória que teve até derramamento de sangue.
Por hoje, a poeira imediata parece ter baixado: Boluarte tomou posse como a primeira mulher a presidir o Peru pedindo “unidade” e Castillo foi detido – a oposição suspeitava que os movimentos de hoje fossem apenas um despiste para se esconder em uma embaixada e pedir asilo, na tentativa de fugir dos vários processos que o agora ex-presidente enfrenta na Justiça peruana (diante dos rumores, houve quem bloqueasse os acessos à representação diplomática do México, supostamente o país para onde o presidente pretendia ir; a chancelaria mexicana negou que Castillo tivesse pedido asilo). Mas, com o sistema político e jurídico que faz do governo uma porta giratória, é questão de tempo até que chegue o primeiro incômodo com a nova mandatária para desembocar em outra crise, outra moção, outro cabo de guerra. Boluarte, afinal, ainda é integrante da chapa que levou Castillo ao governo – e, em um país onde toda a classe política parece sempre às voltas com a Justiça, ela própria também já encarou processos (curiosamente, arquivados nesta semana) e pode ver surgir um novo pretexto para um afastamento logo adiante.
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