Lula eleito: América Latina reabre portas para o Brasil
Clima de normalização diplomática nem espera posse e projeta retomada de alianças estratégicas após anos de desintegração regional; próximos anos também devem ter desafios e radicalização da direita
Nem 24 horas se passaram desde que Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito pela terceira vez presidente do Brasil no domingo (30) e a diplomacia brasileira já voltou a respirar novos ares. No dia seguinte à vitória apertada contra Jair Bolsonaro, Lula recebeu a visita do primeiro líder vizinho: o argentino Alberto Fernández, que há anos denunciava os abusos judiciais da Lava Jato que levaram o petista à prisão e já projetava essa dobradinha, desembarcou no Brasil e trocou um caloroso abraço com Lula, exaltando um futuro comum “que nos abraça e nos convoca”.
Já seria particularmente chamativo notar um chefe de Estado eleito se encontrando (tão rápido) com seu par ainda em um recém-iniciado período de transição de governo. Mas o encontro traz mais símbolos: sob Bolsonaro, o Brasil não foi capaz de nem mesmo manter uma relação protocolar com Buenos Aires, fato que por muito pouco não colocou as relações entre os dois países (e as do próprio Mercosul, bloco econômico que integram ao lado de Paraguai e Uruguai) em um ponto diplomático de não retorno. Ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes chegou a menosprezar o papel do bloco há quatro anos.
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O pronto reconhecimento do triunfo de Lula atravessou quase todo o território latino-americano tão logo sua vantagem nas urnas se desenhou inapelável. Praticamente todos os líderes da região usaram suas redes sociais para parabenizar o futuro presidente: do México, Andrés Manuel López Obrador postou uma foto ao lado do petista e disse que, sob nova direção, “haverá igualdade e humanismo”; “Lula. Alegria”, resumiu o chileno Gabriel Boric, cuja posse foi ignorada por Bolsonaro; “um caminho de paz, progresso e justiça social”, disse o boliviano Luis Arce, que esteve com Lula há algumas semanas; “trabalhador, sindicalista, lutador”, exaltou Pedro Castillo, presidente do Peru.
Os acenos a um futuro de boas relações não se resumiram ao lado vermelho do espectro: de raízes ideológicas divergentes, os mandatários de Uruguai, Paraguai, Equador e Guatemala também reconheceram o desfecho no Brasil – significativamente, porém, as manifestações de lideranças conservadoras só começaram a tomar as redes sociais após a confirmação de que os Estados Unidos, com Joe Biden, tinham avalizado o pleito. Afinal, não vale a pena comprar briga com a maior economia latino-americana em tempos de crise global – sobretudo agora, quando, pela primeira vez, os cinco principais PIBs regionais estarão sob a batuta de lideranças à esquerda. E será recíproco no que depender de Lula, que em seu discurso de vitória na noite de domingo – sem atacar instituições, criar inimigos imaginários ou condenar o mundo a troco de nada – defendeu uma reintegração do continente e disse que “o Brasil é grande demais para ser relegado a pária no mundo”.
O governo de Gustavo Petro na Colômbia é outro que pretende estreitar laços com o Brasil, também por uma preocupação comum: a Amazônia. Ambas integrantes da lista de nove países que abrigam a floresta tropical, as duas nações, segundo Petro, devem seguir uma agenda de cooperação que inclui quatro pontos: o resgate da selva amazônica e suas pesquisas científicas; o caminho de uma nova política antidrogas não-violenta; a criação de uma rede elétrica integrada com energias limpas; e integração econômica latino-americana. Colocar a Amazônia no centro das discussões é urgente não apenas para o meio ambiente diante do avanço da crise climática: é também necessário para o Brasil, território com maior porção de floresta, que sob Bolsonaro e sua farra anti-ambiental viu o desmatamento aumentar de forma acentuada.
Esperanças de diálogo no campo progressista que só viu Bolsonaro dar-lhe as costas, dúvidas em lugares que mantiveram uma política de portas abertas com Brasília nesse período: o Paraguai, talvez o vizinho mais próximo do líder de extrema direita, prepara-se para trocar de mandatário em 2023, e já terá primárias em dezembro, possivelmente influenciado pelos novos ventos vindos do lado de cá da divisa. A região também aguarda com curiosidade os posicionamentos do brasileiro sobre os governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela – sempre citados como espantalhos autoritários nos debates, eles já vêm sendo criticados por nomes da nova esquerda latina, como o chileno Boric. Com a própria oposição venezuelana cogitando deixar de lado Juan Guaidó, a nova postura do Brasil quanto a Nicolás Maduro também deve ser determinante para a recalibragem da geopolítica latino-americana.
Ainda sem nem mesmo iniciar a transição formalmente e já vendo mobilizações golpistas em suas estradas (nosso editor Juan Ortiz relata sua experiência em um bloqueio neste link), Lula também experimenta o primeiro sabor de uma situação bem conhecida pelos vizinhos – a tentativa constante de desestabilização. E fará bem em olhar para as crises no Peru, onde Pedro Castillo não teve um único dia de paz desde antes da posse, em julho de 2021, e na Bolívia, onde um governo que já derrotou um golpe de Estado agora encara outra manifestação opositora que ganha ares nacionais. Em uma América Latina onde a direita outra vez parece perder espaço, muitas vezes sem reconhecer suas derrotas, uma coisa é garantida: ainda que a vitória de Lula reabra portas, dificilmente haverá tranquilidade tão cedo.
Novos ventos no Brasil!
Parabéns pelo incrível trabalho.