Por que o futebol chileno não volta?
Um resumo de como a crise social do país segue repercutindo na bola
Após os protestos do Chile se tornarem multitudinários, na tarde de 18/10, muita coisa mudou na rotina da população local: do toque de recolher dos primeiros dias às promessas por uma nova Constituição, comerciantes tiveram que fechar as portas, a polícia apareceu envolvida em violações de direitos humanos que remetem à ditadura, e mesmo o futebol passou a conviver diretamente com a realidade das manifestações. Os dirigentes dos principais clubes chilenos se reuniram na manhã desta terça-feira (26) e, até aqui, não chegaram a qualquer conclusão sobre o que fazer. Na mesa estão desde a suspensão e encerramento do campeonato, mesmo com rodadas faltando, até sua eventual continuidade fora do país: jogando em Mendoza e San Juan, cidades argentinas próximas à fronteira com o Chile. Aqui, o GIRO LATINO conta em cinco tópicos como a crise social vem afetando o futebol da nação transandina: o que falta jogar, como o futebol se relaciona com os protestos, o retorno frustrado na última sexta-feira, as propostas que existem hoje e o que pode acontecer se as disputas não acabarem.
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1) O que falta jogar?
O Campeonato Chileno e sua Segunda Divisão, além da Copa Chile, são as competições mais afetadas. Divisões inferiores, que costumeiramente envolvem equipes semiamadoras ou de localidades menores, até seguiram tendo jogos apesar da crise. A parte principal do futebol profissional, porém, não funciona normalmente desde 17/10, véspera da sexta-feira em que o país começou a ir massivamente às ruas, após uma semana de protestos que eram originalmente liderados por estudantes. Faltam seis rodadas no campeonato nacional e três na divisão de baixo. Já a Copa Chile ainda precisa disputar suas semifinais e a final, ambas as fases em ida e volta. Há necessidade, portanto, de recuperar pelo menos dez datas para os clubes do primeiro escalão que ainda disputam a copa – o que inclui Colo-Colo, Universidad de Chile e Universidad Católica, os três principais times do país.
2) O futebol diante dos protestos
Desde que o futebol chileno foi interrompido, sua rotina passou a ser cada vez mais marcada por uma conversa direta com as manifestações. Já no início dos protestos, diferentes ídolos da Seleção Chilena deram declarações favoráveis às demandas sociais, chegando ao ponto de, no último dia 13/11, anunciarem que não entrariam em campo para um amistoso contra o Peru, em Lima, porque seu país tinha outras prioridades. Os clubes de futebol tampouco ficaram indiferentes à situação do país. O Colo-Colo, que possui a torcida mais numerosa, chegou a organizar uma assembleia (“cabildo”) em seu estádio, para discutir propostas para o país e pela democratização do futebol chileno, hoje dominado por clubes-empresa e em que os sócios-torcedores não têm poder real (veja a thread linkada abaixo). As barras, torcidas organizadas dos clubes, também se notabilizaram por sua participação em manifestações, especialmente a Garra Blanca, do próprio Colo-Colo, que se comprometeu a não deixar o futebol voltar enquanto suas demandas por Justiça não forem atendidas – a torcida exige punição aos militares e policiais envolvidos em atos de violência nos protestos.
3) Retorno frustrado
Após mais de um mês interrompido pelas convulsões sociais, o futebol chileno tentou retornar na última sexta (22) – e, quase imediatamente, foi suspenso novamente. O primeiro jogo do retorno aconteceu às 11 da manhã, entre Unión La Calera e Deportes Iquique. No Estádio Bicentenario de La Florida, região metropolitana de Santiago, a partida transcorreu normalmente até os 22 minutos do 2º tempo, quando membros da Garra Blanca (ver item 2) entraram à força no estádio e começaram a atirar objetos em campo. Houve, sim, um jogo do Campeonato Chileno nesta retomada: o Cobresal bateu a Unión Española por 3x2 em partida realizada no início da tarde, mas em circunstâncias muito particulares – o jogo aconteceu em El Salvador, uma pequena cidade mineira no deserto do Atacama, com 7 mil habitantes e a mais de mil quilômetros de Santiago, bem longe dos protestos da capital. Após os incidentes em La Florida, a organização do campeonato suspendeu todo o restante da rodada. Desde então, o futebol segue sem data para voltar em definitivo no país.
4) Propostas
Na reunião desta terça-feira (26), a proposta da Associação Nacional de Futebol Profissional (ANFP) foi pela suspensão do campeonato como está, atribuindo o título e as vagas internacionais de acordo com as posições que as equipes ocupavam na tabela no momento da interrupção. Não haveria rebaixamento, e o campeonato do ano que vem seria ampliado para acomodar todos os interesses: hoje com 16 clubes, ele poderia passar a ter 24 (todos os atuais integrantes mais os oito melhores times da B, que estavam em boa situação para buscar acesso para 2020) ou até mesmo 32, unificando as duas divisões. Nenhuma das propostas agradou muito os dirigentes, que não haviam chegado a um acordo até o meio da tarde. Também se discute uma eventual retomada fora do país, com jogos na Argentina, outra ideia lançada sobre a mesa mas que não foi votada até o momento.
5) O que acontece se não acabar?
Depende. Não existe um precedente no futebol sul-americano no século 21, e os casos anteriores podem servir de exemplo, mas não há garantia de que a mesma lógica se aplicará desta vez. Em linhas gerais, a história registra dois caminhos: ou o campeonato é considerado interrompido e cancelado, sem que seus resultados sejam homologados como finais, e nenhum time é campeão nem conquista vagas continentais; ou os clubes e a ANFP chegam a um acordo para que os resultados sejam oficializados, mesmo sem a disputa ser concluída, o título é atribuído ao time que liderava a competição (a Universidad Católica) e as vagas na Libertadores e na Copa Sul-Americana vão para as equipes que estavam em posição de se classificar a elas antes da suspensão. O primeiro caso tem seu precedente mais recente no Campeonato Colombiano de 1989, que não proclamou campeão nem levou times a disputas continentais em 1990. O segundo exemplo tem um paralelo no Campeonato Paraguaio de 1993, interrompido a quatro rodadas do final, que utilizou a tabela do momento da suspensão para declarar seu campeão e distribuir as vagas internacionais.
PS: e a Bolívia? Outro país afetado por uma violenta crise política que suspendeu seu futebol, a Bolívia possivelmente vive uma situação até mais complicada que a do Chile neste momento – curiosamente, não em seu futebol, que foi retomado no último sábado e, desde lá, vem disputando suas partidas sem interrupção. A principal diferença está no menor envolvimento das próprias torcidas com a convulsão social: enquanto no Chile as barras fizeram da suspensão do futebol uma questão de honra, em solo boliviano essa influência do futebol se revelou menor. Faltavam dez rodadas quando o campeonato foi interrompido na terra de Jeanine Áñez.
Atualização, 26/11 às 20:15: a reunião da ANFP terminou sem grandes novidades. No fim, nenhuma das propostas radicais foi aprovada e os cartolas optaram pela manutenção do status quo das últimas várias semanas – seguir trabalhando pela volta do futebol “no próximo final de semana”, sem qualquer garantia concreta de que isso será possível. No entanto, terão que passar também por cima dos jogadores: horas após a reunião dos cartolas, o Sindicato dos Futebolistas Profissionais (Sifup) também realizou um encontro e optou, por 34 votos a 6, por uma greve geral que impediria a retomada neste final de semana.
O Giro Latino é uma newsletter produzida por Girão da América, Impedimento e Fronteira.