⛈️ Crise climática na América Latina impactará “2024 e além”, alerta órgão da ONU
GIRO #231 | Organização Meteorológica Mundial confirma ano mais quente já registrado em 2023, com impactos que vão de secas recorde a cheias históricas como as vistas no RS
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A catástrofe climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, onde mais de 1,9 milhão de pessoas foram diretamente impactadas pelas cheias que já deixaram ao menos 116 mortes confirmadas pelas autoridades, voltou a colocar o Brasil em um mapa que a América Latina conhece bem. Os eventos extremos agravados pelas mudanças vistas ao redor do globo, como as notícias mostram cada vez mais, têm em nossas latitudes alguns dos pontos mais vulneráveis às alterações do que se entendia como os limites do possível para o clima. Quando o estado mais meridional do Brasil viveu as históricas cheias de 1941, alguns especialistas apontavam que poderia levar até 1.500 anos para chuvas torrenciais daquele tipo se repetirem – mas todas as marcas foram superadas apenas 83 anos depois.
Há pouco mais de um ano, 374 municípios gaúchos estavam em situação de emergência… pela estiagem. Hoje, são quase 340 em calamidade pelas cheias. É por isso que o provável fim do fenômeno El Niño, que trouxe um cenário de repetidas destruições ao sul brasileiro desde o segundo semestre do ano passado, não significa uma trégua – mas, possivelmente, a contínua troca de um problema por outro. Como também ocorrerá em vários pontos do continente, sofrendo de uma maneira ou de outra com os extremos climáticos que se tornaram ainda mais graves após um 2023 que bateu todos os recordes de temperatura. Um triste novo normal que não deve ceder: um relatório anual da Organização Meteorológica Mundial (OMM) divulgado na quarta-feira (8), analisando apenas o ano passado, alertou que os impactos seriam sentidos “em 2024 e além” – algo que já se vê na prática.
As chuvas – que ainda não pararam no RS – desceram no mapa para o vizinho Uruguai, que também teve precipitações volumosas em um curto período de tempo. Graças à configuração demográfica do pequeno país vizinho, felizmente, a população afetada foi muito menor: com zonas menos povoadas de fronteira e do centro do país enfrentando as chuvas torrenciais, o Sistema Nacional de Emergências uruguaio reportava 1.347 pessoas evacuadas até quinta-feira (9), um número muitas ordens de magnitude abaixo do visto no Brasil – para comparar, só em cidadãos uruguaios pegos pela chuva no lado brasileiro o número superou uma centena. O Uruguai também se notabilizou em anos recentes por investir pesado na adaptação contra cheias, o que ajuda a mitigar os estragos. Ainda que as perdas humanas tendam a ser muito menores do que no Rio Grande do Sul, o colapso das safras de soja e arroz em função das chuvas já preocupa as autoridades, podendo causar angústias econômicas e insegurança alimentar nos próximos meses.
Não só no Cone Sul (partes da Argentina próximas à fronteira também vivem cheias) as precipitações acima da média deixam vidas, cidades e colheitas destroçadas pela América Latina. Países da região caribenha também entraram no mês de maio em diferentes graus de alerta: o Haiti, como se não fossem suficientes as várias outras crises com que se depara, teve pelo menos 13 mortos em função das inundações no país (menos de um ano após outro evento semelhante ainda mais fatal), Porto Rico tem 22 cidades em emergência pelas chuvas e, na Colômbia, também banhada pelo Mar do Caribe, são três regiões as que decretaram emergência pelo excesso de água, e também começam a contabilizar suas vítimas. Por outro lado, em meados de abril, a capital colombiana começou a enfrentar uma das piores crises hídricas desde a década de 1980, com racionamento de água.
A crise colombiana também afetou os vizinhos equatorianos por tabela: agonizando por secas prolongadas vindas do El Niño, o Equador, cuja geração de energia depende muito das hidrelétricas, sequer pôde contar com a energia que importa da Colômbia, já que os vizinhos viviam eles próprios um problema similar. A questão atingiu seu ápice entre os meses de março e abril, causando apagões em várias regiões equatorianas e levando o governo local a decretar emergência no setor elétrico.
A mesma falta de água potável vista na Colômbia, paradoxalmente, atinge também as vítimas das enchentes. Como se viu no Rio Grande do Sul, muitas áreas estão rodeadas por mais água do que jamais viram e, no entanto, não têm o líquido vital para beber – o extravasamento dos sistemas de esgoto, a inoperância das estações de tratamento em função do volume atípico dos rios e a dificuldade de abastecimento pela falta de estradas e aeroporto, destruídos ou inundados, criaram um cenário de escassez de água.
Quanto às secas, o relatório da OMM destacou o drama vivido em 2023 pelo Rio Negro, no Amazonas brasileiro, cujo leito chegou ao nível mais baixo desde que há medições. Hoje, o ponto que mais sofre com a estiagem no continente é a Mesoamérica: o México passou a semana com uma onda de calor excepcional que levou a cortes de energia pouco típicos, e a Costa Rica precisou decretar racionamento de eletricidade como consequência da pior seca em 50 anos – o país, que graças às hidrelétricas chegava a aparecer como destaque mundial por operar dias inteiros utilizando 100% de energia renovável, descobriu da pior forma que nem a água dos rios é tão renovável assim no mundo atual, e hoje mais de 20% de sua rede elétrica já é abastecida por fontes “sujas”.
E, como é comum em toda a região, parte do ‘novo’ problema costa-riquenho também é fruto de lideranças que, fiéis a uma agenda conservadora, abraçam cada vez mais o negacionismo climático, como discutido no GIRO #184.
Na quinta (9), a onda de calor da metade da América ainda levou os níveis de qualidade do ar de Tegucigalpa, capital de Honduras, a patamares tão danosos à saúde humana que o governo viu-se obrigado a fechar escolas e ordenar um retorno ao trabalho remoto onde isso era possível.
O calor excessivo, aliás, aparece na raiz dos diversos dramas climáticos. Mesmo que Porto Alegre tenha amanhecido com 14 graus na sexta-feira (10), os meteorologistas apontam que o acúmulo de chuvas que atinge todo o estado é consequência da incapacidade de as frentes frias romperem o bloqueio atmosférico que mantém o Sudeste brasileiro sob temperaturas recorde para essa época do ano há vários dias. Com isso, as nuvens estacionam, e em quatro dias despenca a chuva de quatro meses. Indireta ou diretamente, o calor também deixa estragos em outros pontos da América do Sul: na Venezuela, foi confirmada a perda do último glaciar que o país ainda tinha, na Serra Nevada de Mérida, tornando-a a primeira nação a perder todas as suas geleiras em tempos modernos.
A mensagem parece repetida, porque de fato é. Dependendo da geração de quem nos lê, a iminência do colapso do clima é uma promessa ouvida literalmente desde que nascemos. Com os últimos nove anos sendo os nove anos mais quentes já registrados, e 2023 tendo elevado essa curva de maneira que pegou até os mais pessimistas de surpresa, é nítido que essa realidade já não é um futuro abstrato, mas um desafio que teremos que enfrentar todos os anos pelo resto de nossas vidas. Na América Latina, isso vem com o agravante de encarar essa situação frente a um pano de fundo de históricas desigualdades sociais que fazem o clima afetar de forma mais pesada quem já tem muito pouco.
Nota dos editores: parte desta edição foi escrita diretamente de uma Porto Alegre convertida em cenário de guerra (a frase, repetida diversas vezes nos últimos dias, não é um exagero), onde reside um dos editores deste GIRO. Vivendo em um local alto da cidade, o sofrimento direto foi incomparavelmente menor do que em outras partes – falta água nas torneiras há uma semana, mas ainda há abastecimento de outros itens básicos. A sorte geográfica é puro acaso: a esquina onde vivi por oito anos, em área na qual jamais se imaginou que pudesse haver um alagamento do tipo, submergiu durante a semana, e é possível encontrar vídeos de um tanque híbrido do Exército resgatando ex-vizinhos por ruas que viraram rios com um metro e meio de água acima do chão. Em 2024, você nunca sabe quando pode se tornar um novo refugiado climático.